
Três poemas de Ivan Junqueira

Tristeza
Esta noite eu durmo de tristeza.
(O sono que eu tinha morreu ontem
queimado pelo fogo de meu bem.)
O que há em mim é só tristeza,
uma tristeza úmida, que se infiltra
pelas paredes de meu corpo
e depois fica pingando devagar
como lágrima de olho escondido.
(Ali, no canto apagado da sala,
meu sorriso é apenas um brinquedo
que a mãozinha da criança quebrou.)
E o resto é mesmo tristeza.
em 'Os Mortos'
***
Talvez o Vento Saiba
Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.
em 'Poemas Reunidos'
***
No Leito Fundo
No leito fundo em que descansas,
em meio às larvas e aos livores,
longe do mundo e dos terrores
que te infundia o aço das lanças;
longe dos reis e dos senhores
que te esqueceram nas andanças,
longe das taças e das danças,
e dos feéricos rumores;
longe das cálidas crianças
que ateavam fogo aos corredores
e se expandiam, quais vapores,
entre as alfaias e as faianças
de tua herdade, cujas flores
eram fatídicas e mansas,
mas que se abriam, fluidas tranças,
quando as tangiam teus pastores;
longe do fel, do horror, das dores,
é que recolho essas lembranças
e as deito agora, já sem cores,
no leito fundo em que descansas.
em 'A Sagração dos Ossos'
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Ivan Junqueira (1934 2014) foi um jornalista, poeta e crítico literário brasileiro. Era membro da Academia Brasileira de Letras.