
Três poemas de Mell Renault
Diálogos de Mell Renault com Ferreira Gullar
Querido Gullar
Descobri a flor em fogo
os deuses frágeis
as metades
partes inteiras
e tantas outras faces.
Convivi com o dia
vi o gato
o galo
a pêra
que ali apodrecendo
sofre como nós
a ação do tempo.
Soube
que o poema
reflete o povo
terra fértil
que recebe e se funde a espiga.
Extraí o sumo do verso
e aprendi
que vale a pena a vida
embora caro esteja
o pão, a carne, o feijão
embora o cansaço
embora estejamos condenados
embora
a liberdade seja curta
a vida vale.
Concretizei
o azul
no mar
no ar
no barco
na casa
na asa
na camisa
tingida de céu
vi
o vermelho
que o cão perseguia
na flor.
Me atrevi
palavrapoesia de cinza
palavrapoesia que fala do dia
palavrapoesia seca
mas que florescia.
Soube
que não se responde
certas perguntas
não adianta tentar
traduzir-se.
A dúvida
é alidada da criação,
a salvação metafórica
das respostas duras.
No susto
me lembrei
sou um homem comum
como você é um homem comum
feito de lembrança
e esquecimento
e isso me salvou de mim.
Foi você
que me ensinou
para que serve o nome
– para coisa nenhuma
e tudo.
Mortalha
Os mortos
estão vivos
andam pela casa
leem o jornal
batem a porta do quarto
com as nossas mãos.
Os mortos
estes que enterramos
o corpo
rígido, frio, opaco,
estão vivos
comem da nossa comida
vestem nossos casacos
calçam os nossos sapatos
com os nossos pés.
Estão ali
fixados no ontem
numa lembrança
de carne
onde a vida
não esvaiu.
Os mortos
estão vivos
vão à praia
atravessam a rua
pegam o metrô
com os passos largos das nossas pernas,
estão ali
no oco
da presença
transvestidos de memória
usando de nossas falências
e saudades.
Os mortos
estão vivos
e também choram
à sua ausência
pela lágrima
dos nossos olhos.
Resquícios
Amanhã, parto
vou-me embora
buscar outros lados
rumos, laços.
O que fica
de mim
nesse quarto amarelo?
O que
vem comigo
são os sorrisos
o cheiro do tabaco
o encardido do lençol
os nossos abraços.
Amanhã, parto
daqui levo
os olhos
os dedos
os versos pingados
a amizade
que a poesia
não consegue apreender
no poema.
O que fica de mim?
As cismas
os óculos de lentes sempre sujas
o papel embolado
jogado
naquele canto escuro.
Amanhã, parto
levo comigo
os nãos
o pente
o telegrama recebido de longe.
Deixo aqui
o que fica de mim
as mãos
o caminhar junto
o coração
este
que não morre
que não para
que insiste
ainda que
mergulhado na angústia.
Amanhã, parto
e deixo contigo, amigo
todas as minhas crias.
* Você pode adquirir os plaquetes de Mell renault com Diálogos poéticos com Ana Cristina Cesar, HIlda Hilst, Manoel de Barros, Ferreira Gullar e Henriqueta Lisboa visitando o site da poetisa.
---
Mell Renault é escritora e dramaturga. Mineira de Belo Horizonte, tem 34 anos, quatro filhos e é casada com o fotógrafo e escritor Carlos Figueiredo – que mantém e organiza sua obra artística. É autora de Patuá (Coralina, 2019)

Foto de arte de : Carlos Figueiredo.